10.01.2010

A culpa é da maçã

1

A dieta recortada da revista feminina listava cardápios que Camila nunca teria coragem de comer. Proteína de soja tinha gosto de papel, purê de legumes dava trabalho para preparar e verdura só era comida se fosse para bicho, mas as frutas eram práticas e saborosas e, portanto, negociáveis.

Desta vez levaria a meta a sério, pensava, enquanto esticava os meiões tornozelo acima, de forma a cobrir toda a parte desnuda e rigorosamente depilada da perna, parte que escapava à sutil proteção da calça de lycra.

Tênis de corrida, os longos cabelos aloirados presos por um elástico, Ipod preparado e a moça curvilínea do espelho se despedia da outra, esta obstinada em emagrecer.

O tempo na esteira era empenhado ao culto à própria figura. Não se achava feia, muito pelo contrário, mas sabia que precisava perder peso. A concorrência estava grande e ademais, era difícil superar o fato de o último namorado tê-la deixado por conta dos quilos a mais. Claro que não foi isso que ele disse, mas ela sabia que era.

Sentindo-se incrivelmente mais magra, decidiu passar no supermercado para garantir a dieta, dirigindo-se diretamente às gôndolas de frutas. Parou, encarou as maçãs com um olhar de pouca intimidade, puxou um saquinho e começou a escolher as que lhe pareciam mais vermelhas e brilhantes.

Sua mente estava absolutamente vazia, absorta na tarefa de rejeitar os frutos com imperfeições, como este que... este que esse homem lindo acabara de pegar e fizera menção de jogar displicentemente em seu próprio cesto de compras.

Notou que era alto e que o rosto parecia desenhado delicadamente em contraste com a barba rala. Notou o cabelo anelado escuro e parcialmente grisalho. Notou os lindos olhos azuis e... sim, notou um sorriso.

Um sorriso para ela! Imediatamente pôs-se a sonhar com o dia em que diria para os amigos “num corredor de supermercado...”

Seguiu no transe até ser interrompida pela voz amistosa daquele que, elevando a maçã desprezada num ângulo em que só ela podia ver a mancha, se desculpava por tomar a fruta que originalmente lhe pertencia. A mão em concha exibia uma notória rodela dourada no dedo anular, elo perdido entre seu mundo onírico e o corredor do supermercado.


2

O homem chegou em casa ruidoso e muito atrapalhado, carregando sacolas e a mulher só desviou o olhar da TV para ajudá-lo mais de um minuto e meio depois, assim que começou o comercial.

Inventariadas as compras, iniciou-se uma tarefa muda de guardar os alimentos. O açúcar foi despejado pela metade no açucareiro e o restante foi para o pote na estante. As portas do armário foram abertas e algumas latas de conservas foram enfileiradas na prateleira, assim como os pacotes de macarrão e de biscoito recheado.

A mulher separou a parte perecível e colocou os ovos na geladeira, assim como a margarina e a caixa de Tody. As frutas foram retiradas cuidadosamente dos sacos e introduzidas na gaveta inferior, tarefa interrompida para atender ao pedido de uma lata de cerveja e retomada em seguida.

Enquanto abria a lata, ele observava com estima o trabalho desta mulher e o cuidado com que conduzia tudo na casa. Era uma mulher sem mais muitos mistérios, mas ainda bonita, mesmo depois de passados vários anos da maternidade. Uma mãe carinhosa e modesta nos gastos. Através desse pensamento certificava-se de sua escolha. Sim, pois após anos de farras incompatíveis com o estado civil, finalmente acreditava compreender o que era amor.

O terno sentimento de convicção foi violentamente interrompida por um xingamento seguido de um olhar irado e de uma queixa contra sua incapacidade crônica de escolher frutas, como esta maçã que empunhava com tal força que os dedos quase penetravam o halo marrom.


3

Bêbado de sono, cambaleou até a cozinha, abriu a geladeira, pegou a caixinha e a fruta, abriu o zíper da mochila onde guardou tudo e saiu apressado.

Encostou na parede do elevador e cochilou por dez segundos. Atravessou a rua sorumbático e continuou um delicioso sonho no ônibus - “ela é tão linda, e é tão minha...”

Um pouco mais tarde, o barulho estridente do sinal, longe de despertá-lo, lembrou a iminência de sua presença. Ela sempre chegava alegre e desperta e se movimentava muito. Achava-a tão bonita com aqueles cabelos amarelos...

Quando ela começava a falar – ela falava bastante - ele gostava de vedar os ouvidos com os dedos para vê-la mover os lábios. Assim tinha certeza de ouvi-la dizer dele coisas tão lindas quanto as que ele pensava dela. Mas havia aquela detestável hora em que o sinal tocava novamente e ela se despedia.

“Não desta vez”, pensou, cheio de coragem. A mão trêmula buscou o volume na mochila. As pernas traíam seu peso ao se levantar. O menino caminhou na direção da amada, o braço direito esticado, a mão apertando fortemente a maçã, a oferecê-la. Em troca, não viu mais do que um olhar maternal.

As gargalhadas da turma o invadiram. Seu olhar assustado buscava uma explicação para a súbita percepção de que sonhara demais. Os olhos doces da professora miravam aquela circunferência tão vermelha, maculada por uma gritante mossa mole e marrom.

A culpa é da maçã, pensou.


.

Nenhum comentário: