1.25.2011

Sobre demolições, morte e vida

Voltei aos escombros do Hospital mesmo estando exausta, e suada, e com aquela camada de pó me cobrindo os pés e as pernas e com o suor me engordurando as faces e o calor consumindo minha sanidade. Voltei porque achava que a as coisas, muito mais do que as pessoas, mereciam minha consideração. Porque as coisas me ajudavam a saber quem sou e ali, em meio àquele monte de pedras e concretos armados, e concretos, e armações, e cerâmicas amareladas e pastilhas foscas brancas eu me acessava melhor do que nunca.

O calor estava desumano, africano, algo que só quem frequentou o Fundão pode saber. Sentar na grama daquele lugar é de uma entrega que só o desapego pode explicar. Tive vontade de gritar: eu fui aprovada no vestibular 99, fui a centésima e poucas colocada, sou um pouco dona disso aqui.

E os alarmes que tocavam de 5 em 5 minutos davam um ar de terceira chamada da escola, "uma hora isso acaba". E a hora chegando e eu ali pensando que acordar às 4 da manhã num domingo, tendo se privado de uma noite no Rio de Janeiro, tudo isso dava um ar engrandecedor ao evento. E a escolha do melhor ângulo com a desculpa de estar ajudando o cameraman a fazer seu filme impecável, tudo isso disfarçava o nervosismo de ver algo que significava bastante para você ruir.

Iam demolir a perna seca do Hospital Universitário do Fundão e eu ia assistir pela primeira vez uma vontade gigantesta ser destruída. Inevitável lembrar que "a arquitetura moderna morreu em St. Louis, Missouri, em 15 de julho de 1972, às 15h32min (aproximadamente), quando o infame conjunto habitacional Pruitt-Igoe, ou melhor, grande parte dos seus blocos, levou, por dinamite, o golpe de misericórdia".

6:54 olhei para o relógio. Faltava um minuto para o último alarme.

O último alarme durou uma eternidade. Durou 2 horas. Durou 1 dia inteiro, anos. O coração batia. O cameraman me olhou arregalado e pegou minha mão. Naquele momento não era mais um profissional, era outro ser humano espantado diante da grandiosidade da vida e da morte. Naquele momento o mundo esteve em suspenso. E depois as explosões. Não sabia se tampava os ouvidos ou se me regozijava a cada rompante ensurdecedor, se guardava meus tímpanos para a velhice que caminha a passos largos e impiedosos ou se entregava minha audição de vez àquele arroubo de vida, e de morte que me invadia.

Então uma alteração na geometria do edifício começou a desenhar aquilo que só vi antes pela televisão e que parecia anunciar o fim do mundo: um volume de no mínimo 5 mil metros cúbicos vir ao chão para se tornar não mais do que a areia da praia, assumir sua condição horizontal. Cada centrímetro cúbico daquele edifício veio ao chão como se ao chão pertencesse.

Depois a fumaça sólida, no formato das fofas nuvens brancas que vemos naqueles céus bem azuis, mas que crescia e que ameaçava nos engolir, sufocar, contaminar, matar, mas que não foi mais longe do que o primeiro plano de árvores e serviu apenas para forrar o chão de pó e desenhar as pegadas dos que passaram ali pela primeira vez, e para tingir as copas das árvores de um prateado cor de tédio.

O susto passou, assim como o barulho e o deslumbre. Logo depois a multidão caminhou para o sopé dos escombros. Pareciam exércitos de zumbis em transe, saudando o deus da destruição, alguns profanando o santuário - saqueando relíquias, levando paredes, vigas, pisos, pedras, cerâmicas - como se estivessem guardando pedaços valiosos do Império Romano.

Assim a festa acabou. Os curiosos partiam saciados e, acima da poeira, pôde ir se revelando um domingo. Nós partimos também. Descarregamos o cartão da câmera e voltamos para filmar os escombros. Éramos nós, muito concreto e os urubus. O ar estava parado, havia restos de cartas e prontuários médicos pelo chão e no alto das árvores. O vendedor de bebidas carregava seu isopor para longe dali. Foi como olhar um cadáver, inerte. Inalávamos poeira e morte num domingo ensolarado.

Foi por isso que quando saí dali, mesmo exausta, fui para a casa de uma amiga na Tijuca. Vesti o biquine e desci para a piscina do prédio, onde crianças competiam pelo salto que mais água espirrasse. Riam e gritavam estridentemente. E assim, a despeito de tanta morte, pude alimentar novamente meus sentidos de vida.


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1.12.2011

portunhol

Hormigón armado, ele diz.
Ela olha e vê um prédio, como qualquer outro.
Ele beija sua nuca branca e diz que "ama las brasilerias".
Ela sorri sem graça e murmura: concreto armado.


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