1.29.2018

Breve resumo antes de aqui viver

Nos últimos 50 anos, esse apartamento viveu histórias, várias. Parece que antes de meus avós comprarem, um marinheiro gordo não queria ir embora daqui. Eu me pergunto se o espírito dele ou dos meus avós ainda vivem aqui. Algumas madrugadas parece q os vejo, mas o contato quente do taco me conforta e no fundo não tem mesmo ninguém aqui além da gente não, e essa é a dura verdade da vida. Acabou, acabou.

Uma era vai acabar nesse carnaval, bem clichêzisticamente, na quarta-feira de cinzas. Se bem q não, que a Marina ainda virá aqui em fevereiro pra fazer a obra. Tudo o q eu não queria era ser a Marina nesse fevereiro. Ver a casa dos meus avós se transformar num piso, parede e teto renovados e classificados para um site de aluguéis.

Mas é isso aí, a vida continua e até outro teto eu já tenho.

Se tem um aprendizado q tirei disso tudo é que eu realmente não preciso de nada. Minha alma é inversamente proporcional a quantidade dos meus pertences.minha calça de viscose preta, as 4 camisas e o short estão dando conta da temporada em Copacabana de janeiro de 2018. Aqui cheguei e daqui sairei com caixas de livros e objetos classificáveis, estocáveis e vendáveis, lá pro sótão da casa da Bibi. O tal sótão que era pra ter sido meu quarto por meses, mas a creepice não permitiu não.

Agora estou na Itália. Foi uma insanidade, às vezes gosto de contar essa história só pra poder ouvir de novo e ver se ela começa a fazer sentido de vez pra mim. É gravidez, zika vírus, é a busca de uma oportunidade... é tudo isso, mas é sobretudo um chamado. O mundo me chamava, sempre ouvia seus cantos, mas eu dizia “já, ja, deixe só a Titi ir”. E quando ela foi, eu não enxergava nada, só que eu queria ficar quieta na minha cama. Mas o mundo berra na nossa frente, e estoura nossos tímpanos com todos seus decibéis e cores violentas e só sendo surdo, mudo, cego, apático para não correr alucinado por um consolo.

Brienno foi uma loucura. Um castelo de pedras, frio, lindo, luxuoso e cheio de fantasmas inconformados e que não eram os meus. Eu tenho certeza de que dei muito por Brienno. Dei minha energia, minha paz. Quase dei minha vida naquelas janelas sobre o lago de Como. Gravidez não é fácil, eu me defendia. Mas os Comiti sabem o quê fizeram. Talvez nesse momento eu tenha começado a admirar cemitérios. Flores coloridas, plásticas, iluminadas a LED. E fotos dos que foram, todos os velhinhos da Brienno, o folião de roupa de cavaleiro das cruzadas e o rapaz fardado que morreu aos 20 anos, em 1945.

Hoje li uma carta do irmão de meu avô, desejando condolências à minha avó em 14 de maio de 2000. Ele dizia q parecia ter sido no dia anterior, quando descia a ladeira do sanatório de David com a mãe chorando, depois de despedirem-se de um Pumpo de 28 anos. Doente, sem futuro, judeu.

Vai saber se foi pobre e teve sorte, ou se a prata o salvou. Vai saber se seu coração bateu mais forte em 1939, quando, vestido de alpinista, cruzou a fronteira alemã falando italiano e declarando-se um ítalo-azarado perdido pela Baviera.

Quem o terá ajudado? Quem o terá perseguido? O coração, certamente, nunca se recuperou totalmente, tanto que parou de bater 60 anos depois.

Fragmentos dessa história, de muitas histórias estão escritos a tinta carbônica nas paredes de uma Francisco Sá 38 901. Resistência, dor, cansaço, força. Uma força de vida que viu crescer 3 irmãs, nascerem netos, natais na mais perfeita comemoração católico-comercial de judeus radicados no novo mundo. Eram brinquedos, roupas, mochilas, cadernos e tudo aquilo que crianças e adolescentes podem querer. E assim crescemos sabendo que Jesus Cristo nasceu em 25 de dezembro e por isso ganhávamos presentes e não que D’us ou Davi tenham feito mesmo algo. Eu fui me sentir judia pela primeira vez no cemitério onde enterramos meu avô. Senti um profundo orgulho de pertencer a uma religião que faz uma reza tão profunda para seus mortos. Nessa mesma semana, sentei do lado de um colega judeu da faculdade e pedi para ele me contar como era na sinagoga. Meu interesse durou uma semana, depois me refiz, guardei aquele sentimento de orgulho para um outro momento e fui tocar minha vida.

Depois eu conheci o João, que com a minha carteira de motorista na mão, concluiu que eu, assim como ele, era judia por conta do sobrenome conhecido. Era o início de um novo ano, 2012, e ele me desejou um ano bom, enquanto me deixava na porta da pousada na última noite em que dormi sem ele.

Em Brienno nos casamos. Nos casamos na pedra e na dor. Nos casamos nas lágrimas e nos fluidos da minha barriga, que começaram a vazar precocemente. O Leo não aguentava mais esperar para Ser. O filho amado, que vinha entre amor e medo, nesse curto espaço de tempo que chamamos de vida. Ele veio, apesar de toda a incredulidade de que alguém pudesse querer vir desses 2 pais loucos e despreparados. Quando eu olho pra gente, eu concluo que essa alminha só pode mesmo ser movida a amor, do contrário nunca nos teria escolhido. E eu sinto em seus olhinhos risonhos que ele sabe q fez a escolha certa tb, mesmo a mãe tendo enlouquecido com os gritos do pai, abafados pela pedra. Os fantasmas não faziam um mal a ele, e talvez nem a gente. Mas eles estavam lá, e lá eu vivi meu purgatório. Mas isso são águas passadas, que escoam em algum cantinho do lago di como.

Em 13 de janeiro de 2016 minha avó deixou de lutar, deixando um profundo alívio. Hospitais, remédios, funcionários, pagamentos, dietas horrendas... o último grão na ampulheta-vida de Alice tinha passado para o compartimento debaixo e essa garota de notas infinitamente boas num colégio belga foi enterrada como brasileira no cemitério israelita do caju.

A gente começa nossa vida num lugar e não faz ideia de onde ela vai terminar. Conheci uma senhorinha austríaca em Como, e ela me reconheceu pelo português. Queria relembrar a língua que aprendeu aos 10 anos, quando foi adotada por um casal de Jacarepaguá. A vida é tão sem sentido quanto pode ser. Quem busca um sentido na vida, acaba por perdê-lo completamente.

Minha saída foi uma fuga. Uma fuga da realidade, da falta de amor que ficou quando meus amores mais sinceros se foram. Sobramos eu e a Copacabana. Pobre, feia, suja, famosa. Letreiros neons que nunca existiram, pinas coladas hollywoodianas equivocadíssimas e uma bossa nova que não lhe cai mal. Assim é a Copacabana do quiosque da madrugada, da maresia quente e úmida da noite de verão, do banho de mar mais sujo do mundo. Mas o arco de areia é uma coisa emocionante, do forte do Leme ao forte do posto 6. Quanta nostalgia do posto 6, onde me encontro agora, por mais 1 semana.

O Leo conheceu Copacabana. E minha avó, caso ela realmente esteja ainda por aqui. Eu gosto de pensar na proteção deles, e nós temos muitos.

Durante a gravidez, o Leo veio me contar em sonho que era menino. Ele me deu um desenho a lápis num papel marrom de pão, de um si encaracolado, risonho. Eu vejo o dia em q isso vai acontecer, ele se sentará em uma mesinha e trará uma versão do livro sobre o Leonardo da Vinci que comprei da livraria debaixo do prédio em Como.

Meu avô vendia livros. Na minha fantasia, ele era culto, bem relacionado é bem sucedido. Acho q ele era tudo isso, mas no fundo era só um bom comerciante, sério, estável. 14 anos mais velho que a minha avó, numa linda foto preta e branca do sorriso ferroso e bustiê quadriculado.

Avó jornalista. Cientista social, antropóloga. Mestre pela ufrj, universitária com 3 filhos, doadora generosa de atenções no serviço social. Uma típica alemoa no Brasil. Funcionária pública, blocos e mais blocos com formulários do INPS no verso dos quais eu deixava meus primeiros traços. Terei desenhado a mim mesma, informando em sonho ser uma menina risonha e cheia de sonhos de mundos e sabores distantes?

Uma menina sozinha na Inglaterra e no deserto do Atacama. Uma mãe na Itália e uma cidadã na Alemanha. Uma amiga no Brasil, uma habitante da Rio de Janeiro. Pré-adolescência em Santa Teresa, vinha todo fim de semana pra cabana Copa. Dormia no colchonete sobre o tapete cinza, às vezes no quarto da Titi, onde conversávamos  até dormir. Lembro até hoje da minha primeira decepção amorosa “séria”. Entrei em seu quarto chorando dizendo “Titi, o X acabou comigo” e ela respondeu que “mas nana, TUDO acaba!”. E de fato, também seu sofrimento acabou, algumas dezenas de anos depois.

.